Rainer Maria Rilke
(Áustria, 1875-1926)
Meu caro senhor:
Acabo de receber a sua carta. Não quero deixar de lhe agradecer a grande e preciosa confiança que esta representa, mas pouco mais posso fazer. Não analisarei a maneira dos seus versos, porque sempre fui alheio a qualquer preocupação crítica. Para penetrar uma obra de arte, nada, aliás, pior do que as palavras da crítica, que apenas conduzem a mal entendidos mais ou menos felizes. Nem tudo se pode apreender ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que acontece é inexprimível e se passa numa região que a palavra jamais atingiu. E nada mais difícil de exprimir do que as obras de arte — seres vivos e secretos cuja vida imortal acompanha a nossa vida efémera.
Dito isto, apenas posso acrescentar que os seus versos não revelam uma maneira sua. Contêm, é certo, gérmens de personalidade, mas ainda tímidos e escondidos. Senti-o, sobretudo, no seu último poema: A Minha Alma. Neste poema, qualquer coisa de pessoal procura encontrar solução e forma. E em toda a bela poesia A Leopardi se sente uma espécie de parentesco com este príncipe, este solitário. Contudo, os seus poemas não têm existência própria, independência, nem mesmo o último, nem mesmo o que é dedicado a Leopardi. Na sua carta encontrei a explicação de certas insuficiências que já notara ao lê-lo, mas a que não me fora possível dar nome. Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-mo a mim — depois de o ter perguntado a vários. Manda-os para as revistas. Compara-os a outros poemas e alarma-se quando certas redacções afastam os seus ensaios poéticos. Doravante (visto que me permite aconselhá-lo), peço-lhe que renuncie a tudo isso. O seu olhar está voltado para fora: eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode aconselhá-lo nem ajudá-lo — ninguém! Há só um caminho: entre em si próprio e procure a necessidade que o faz escrever. Veja se esta necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo: “Morreria se não me fosse permitido escrever?” Isto, sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta:
— “Sou realmente obrigado a escrever?” — examine-se a fundo até encontrar a mais profunda resposta. Se esta resposta for afirmativa, se puder fazer face a uma tão grave interrogação com um forte e simples “Devo”, então construa a sua vida segundo esta necessidade. A sua vida, mesmo na sua hora mais indiferente, mais vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Então, aproxime-se da natureza. Experimente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê, o que vive, o que ama, o que perde. Não escreva poemas de amor. Evite, de princípio, os temas demasiado correntes; são os mais difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, por vezes brilhantes, se apresentam em grande número, o poeta só pode fazer obra pessoal na plena maturação da sua força. Fuja dos grandes assuntos e aproveite os que o dia-a-dia lhe oferece. Diga as suas tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde.
Utilize, para se exprimir, as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, os objectos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parecer pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há sítios pobres, indiferentes. Mesmo numa prisão cujas paredes abafassem todos os ruídos do mundo, não lhe restaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa magnífica riqueza, esse tesouro de recordações? Oriente neste sentido o seu espírito. Tente fazer voltar à superfície as impressões submersas desse vasto passado. A sua personalidade fortificar-se-á, a sua solidão povoar-se-á, tornando-se, nas horas incertas do dia, uma espécie de habitação fechada aos ruídos exteriores. E se lhe vierem versos deste regresso a si próprio, deste mergulho no seu mundo, não pensará em perguntar se são bons ou não, não procurará conseguir que revistas e jornais se interessem pelos seus trabalhos, porque gozará deles como de uma posse natural, como de um dos seus modos de vida e de expressão. Uma obra de arte é boa quando nasce de uma necessidade: é a natureza da sua origem que a julga. Por isso, meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida brota. Só lá encontrará a resposta à pergunta: — “Devo criar?”. Desta resposta recolha o som sem forçar o sentido. Talvez chegue então à conclusão de que a arte o chama. Nesse caso, aceite o seu destino e tome-o, com o seu peso e a sua grandeza, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. O criador deve ser todo um universo para si próprio, tudo encontrar em si próprio e nessa parcela da natureza com que se identificou. Pode acontecer que, depois desta descida em si mesmo, ao “solitário” de si mesmo, tenha de renunciar a ser poeta. (Basta, a meu ver, sentir que se pode viver sem escrever para que não seja permitido escrever). Mas, mesmo neste caso, a introspecção que lhe peço não terá sido vã. A sua vida dever-lhe-á sempre, quanto mais não seja, caminhos próprios.
Que esses caminhos sejam bons, felizes e longos é o que lhe desejo como não sei dizer-lhe. Que poderei acrescentar? Creio ter abordado o essencial. No fundo, apenas fiz questão de aconselhá-lo a evoluir segundo a sua lei, gravemente, seguramente. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente a sua evolução do que dirigindo o seu olhar para fora, do que esperando de fora as respostas que só o seu sentimento mais íntimo, na hora mais silenciosa, poderá talvez dar-lhe. Gostei de encontrar na sua carta o nome do professor Horacek.
Dediquei a este sábio um grande respeito e um reconhecimento que já duram há anos. Quer dizer-lhe isto da minha parte? É uma grande bondade dele, que muito aprecio, lembrar-se ainda de mim.
Devolvo-lhe os versos que tão amavelmente me confiou e mais uma vez lhe agradeço a cordialidade e a amplitude da sua confiança.
Nesta resposta sincera, escrita o melhor que soube, procurei ser um pouco mais digno dessa confiança do que o é, na realidade, este homem que não conhece.
A minha dedicação e a minha simpatia.
Rainer Maria Rilke
Paris, 17 de Fevereiro de 1903
In Cartas a um Jovem Poeta, trad. de Fernanda de Castro,
contexto editora, Lisboa, 1994
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